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Janelas no Purgatório: essay in Portuguese

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Caras-pálidas olham pra frente, nunca encontrando o meu olhar, numa sala sem janelas e de luzes e cores igualmente pálidas. Entendo o que eles falam como se fosse em minha língua, mas muitas palavras não registram no meu cérebro.

Nesses momentos, pra não morrer de tédio, crio minha própria religião. Um budismo sem disciplina. Um catolicismo sem santo.

Medito sobre o mundano. Penso numa praia do meu passado, no vestido novo do meu futuro. Penso em ir ao supermercado e em mudar pra China. (Precisa ser tão longe?)

Faço planos que vão descer pelo ralo com meu próximo banho. Chego à conclusões que serão perdidas no calor das minhas cobertas ou no abraço de alguém que não me merece.

Ponho esse alguém que não me merece num pedestal. Um cara que eu mal conheço. Confio toda a minha felicidade e a minha dor ao pobre rapaz. Ele se atira do pedestal, se machuca, mas consegue sair correndo.

Quero sentir a agonia e a êxtase onde elas não existem. No purgatório.

Trabalho num jornal. Na sala sem janelas e com luzes e cores e caras pálidas, escrevo no meu caderninho automaticamente, quase sem pensar. Poucos minutos ou horas depois, o milagre do artigo acontece. Miraculosamente consigo capturar a essência da cena, explicar pros leitores sem que pelo menos alguns durmam no meio das primeiras palavras.

No fim do dia, nada disso importa. Pro meu chefe, sou uma máquina de escrever. Ele nem quer saber se fico meio quebrada.

Pros leitores, tenho que ser uma enciclopédia, sem direito de errar. Qualquer falha apaga centenas de bons artigos que já escrevi.

Entro numa outra sala sem janelas. Meu escritório, onde nunca sei, a não ser pelo relógio, se é dia ou noite. Tenho que olhar na internet pra ver se tá chovendo.

O milagre do artigo vira mundano, onde milagres como esse acontecem a cada cinco minutos. A fórmula fica tatuada na minha cabeça. O tesão era de henna, foi lavado, desapareceu.

O certo alguém que não me merece me falou que o normal é não gostar do trabalho. Mas fiz do trabalho minha própria religião. Dava aleluia a cada sucesso, cada boa idéia. Saía correndo pra queimar demônios com perguntas de água benta. Acreditava no que escrevia.

A fé foi acabando. Minha presença foi diminuindo, engolida pelo meu cubículo, pela rotina, pela falta de elogios e motivação, pelas notícias ruins que não paravam de chegar, pelos cortes de equipe.

Fui passando a não ver nada além da sala sem janelas, dos muros do meu cubículo, me separando do resto do mundo, do paraíso e do inferno.

Me prendendo, agarrando minha mente, espremendo minhas ambições. Cada vez mais.

Devorando meu tempo.

Tenho juventude, saúde, seguro saúde, emprego, família, casa pra morar e carro pra usar. O que mais poderia querer da vida?

A psicóloga diz que sou viciada em mudança, que não consigo parar quieta num lugar.

A psicóloga tá certa. Quero viver pulando de espaçonave a espaçonave. Não quero descer pra realidade, mas ela começa a me puxar.

Na minha casa, meu santuário alugado e cheio de janelas, meus sentimentos ardem, colidem, explodem depois de um dia inteiro pressurizados na minha cabine interna. Naquele espaço entre o fim do trabalho e a hora de dormir, onde só escuto o tique-taque dos relógios de parede, quase posso tocar a solidão.

Devorando meu tempo.

Rezo pruma presença invisível que é uma mulher. Rezo por mudança, enquanto espero ela chegar por e-mail ou telefone. Aquele alguém que não me merece nunca, nunca bate na porta com aquelas flores.

Raramente convido alguém além dele pra entrar. Bebo água direto da garrafa. Como sopa enlatada. A geladeira tá sempre vazia. A televisão sempre desligada.

Tenho tempo demais pra pensar.

Ligo pruma amiga que está quase sempre deprimida. Choramos juntas por aqueles que não nos merecem. Pela morte lenta da nossa profissão. Pelo fato de ainda estarmos presas no sonho americano, já acordadas, sem coragem de deixar tudo pra trás e mergulhar nas dificuldades e chances de outro país. Um terceiro país nessa já longa jornada no exterior.

Falamos, reclamamos, choramos, decidimos. Mas não fazemos quase nada.

Talvez esse outro país fosse o antídoto pro purgatório, ou talvez a conclusão de que não há antídoto. Talvez fosse uma maneira de não termos tempo de olharmos pra dentro de nós mesmas, tendo que navegar uma cultura a língua totalmente diferentes, o caos de não entender nada dos arredores.

Penso na adrenalina, na tontura, no pânico de ser cuspida de um aeroporto para o meio de uma cidade estranha, com sinais indecifráveis, com carros e pessoas cobrindo cada centímetro do asfalto. Penso que estaria fazendo calor. Que meus ombros estariam doendo por causa de um mochilão pesado. Minha roupa, colada no corpo, desconfortável, depois de 26 horas de viagem. Meu corpo sem saber o que é dormir há vários vôos.

Meu emprego, meu conforto, minha outra vida, o purgatório verde e cheio de flores, tudo deixado pra trás.

© 2009, Ana Beatriz Ribeiro


Note from the author: The piece has been modified a little bit from the original. Also, some months back, I sent a version of it to a fellow Brazilian organizing a female creatives’ exhibit at a multicultural festival in Leipzig. We intend to continue publishing pieces in languages other than English here – although the primary language of LeipGlo is indeed English – to reflect the diversity of our readership.

A Global Studies doctoral degree holder and former newspaper reporter, avid eater, pseudo-philosopher and poet, occasion-propelled singer, semi-professional socializer, movie addict, Brazilian-American nomad. In this space, she will share some of her experiences and (mis)adventures regarding various topics, with special attention to social issues.

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